domingo, 11 de maio de 2008

"Modernidade e Holocausto" - Capítulo "Singularidade e normalidade do Holocausto" - Zygmunt Bauman - Fichamento 5

Bauman inicia o capítulo com uma pergunta pertinente do historiador Raul Hilberg: “Vocês não ficariam mais felizes se eu pudesse mostrar que todos os que perpetraram [o crime] eram loucos?”. Pois é exatamente isso que ele não pode mostrar. A verdade que ele de fato mostra não traz nenhum alívio, é improvável que deixe alguém feliz. Os criminosos foram pessoas educadas de sua época.
O autor trata da singularidade do Holocausto, singularidade essa através do uso da racionalidade organizativa. A normalidade e a singularidade do Holocausto é seu cunho burocrático, instrumental e administrativo. O que há de mais terrível no Holocausto não é o genocídio, não é a quantidade de pessoas que ele matou, e sim a forma com que essas pessoas foram eliminadas. O que prova como é ruim ser diferente e como é bom estar são e salvo atrás do escudo de uma civilização superior. Por tudo que conheciam e acreditavam o assassinato em massa para o qual ainda nem tinham nome era pura e simplesmente inimaginável. Porém, sabemos que o inimaginável deve ser imaginado.
Dentro de certos limites estabelecidos por questões de poder político e militar, o Estado moderno pode fazer o que bem entende àqueles sob seu controle. Não há limite ético-moral que o Estado não possa transcender para fazer o que quiser, porque não há poder ético-moral mais alto que o Estado. Em matéria de ética e moralidade, a situação do indivíduo no Estado moderno é em princípio rigorosamente equivalente à do prisioneiro em Auschwitz: ou age de acordo com os padrões dominantes de conduta impostos pelos que detém a autoridade ou se arrisca a todas as conseqüências que eles queiram infligir. Ter que optar pela conformidade ou arcar com as conseqüências da desobediência não significa necessariamente viver em Auschwitz, e os princípios pregados e praticados pela maioria dos Estados contemporâneos não bastam para transformar seus cidadãos em vítimas do Holocausto. O Holocausto não só evitou o choque com as normas e instituições sociais da modernidade, mas foram essas normas e instituições que o tornaram factível. Sem a civilização moderna e suas conquistas mais fundamentais, não teria havido Holocausto. Quando chegou a hora do assassinato em massa, as vítimas se viram sozinhas. Não apenas se haviam iludido com uma sociedade aparentemente pacífica e humana, legalista e ordeira – seu senso de segurança seria um fator poderosíssimo da sua ruína. Vivemos num tipo de sociedade que tornou possível o Holocausto e que não teve nada que pudesse evitá-lo.
O assassinato em massa não é uma invenção moderna. Diante disso, parece negar-se a singularidade do Holocausto. O ódio comunitário mortífero sempre esteve entre nós e provavelmente nunca deixará de existir; e que nesse ponto a única importância da modernidade foi que, ao contrário do que prometia e da expectativa generalizada, não aparou suavemente as arestas sabidamente ásperas da coexistência humana e, portanto não pôs um fim definitivo à desumanidade do homem para com o homem. O Holocausto foi tanto um produto como um fracasso da civilização moderna. Ele é um subproduto do impulso moderno em direção a um mundo totalmente planejado e controlado, uma vez que esse impulso deixe de ser controlado e corra à solta.
O assassínio em massa contemporâneo caracteriza-se por um lado, pela ausência quase absoluta de espontaneidade e, por outro, pelo predomínio de um projeto cuidadosamente calculado, racional. Mas, antes e acima de tudo, destaca-se pelo propósito. O Holocausto absorveu um enorme volume de meios de coerção. Usando-os a serviço de um único propósito, também estimulou sua posterior especialização e aperfeiçoamento técnico. Livrar-se do adversário não é um fim em si. É um meio para atingir determinado fim, uma necessidade que decorre do objetivo último, um passo que se deve dar caso se queira chegar um dia à meta final. O fim em si é a visão grandiosa de uma sociedade melhor e radicalmente diferente.
As vítimas de Hitler não foram mortas para a conquista e colonização do território que ocupavam. Muitas vezes foram mortas de uma maneira mecânica, enfadonha, sem o estímulo de emoções humanas – sequer o ódio. Foram mortas por não se adequarem, por uma ou outra razão, ao esquema de uma sociedade perfeita.
É único entre outros casos históricos de genocídio porque é moderno. E é único face à rotina da sociedade moderna porque traz à luz certos fatores ordinários da modernidade que normalmente são mantidos à parte.
Assim foi que na Alemanha de meio século atrás essa burocracia recebeu a tarefa de tornar o país livre de judeus. A burocracia que se incumbiu tão bem da tarefa de limpar a Alemanha tornava factíveis tarefas mais ambiciosas e quase natural a escolha delas. Por fim e talvez mais importante, o modo de ação burocrática deixou sua marca indelével do processo do Holocausto. A burocracia não gerou o medo da contaminação racial e a obsessão com a higiene racial. Para isso precisava de visionários, pois a burocracia começa de onde param os visionários. Mas a burocracia fez o Holocausto. E o fez à sua própria imagem. A burocracia contribuiu para a continuidade do Holocausto, não apenas por sua inerente capacidade e suas técnicas, mas também por sua imanente enfermidade e afecções. A burocracia é intrinsecamente capaz de ação genocida.
O genocídio ocorre como parte integrante do processo pelo qual é implantado o grandioso projeto. O projeto lhe dá a sua legitimação; a burocracia estatal, o seu veículo; e o imobilismo da sociedade, o “sinal verde”.



Bibliografia

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998. Capítulo “Singularidade e normalidade do Holocausto” p.106 a 141.

Nenhum comentário: